Era verão, e como de costume
Helen estava sentada na sua cadeira predileta na varanda da antiga casa dos
seus avós em Montijo, Portugal. A família vivera naquela casa desde os tempos
em que a cidade ainda era conhecida por Aldeia Gallega do Ribatejo e a velha
construção apresentava ainda quase toda a sua estrutura firme apesar da
aparência triste das antigas janelas e do piso de madeira que se foram
desgastando com o tempo. Na verdade, esse era um dos aspectos que Helen mais
gostava na casa dos avós, a impressão de estar pisando nas pegadas de gerações
e gerações de ancestrais que viveram ali, podendo ouvir a cada passo o ranger
das velhas tábuas de madeira como se fosse o som do andar de parentes que ela
jamais conhecera. E sentar-se ao entardecer na velha cadeira feita pelas mãos
do seu bisavô, durante a gravidez da sua esposa, que na época carregava o seu
primeiro filho, para que esta pudesse descansar as pernas castigadas pelos nove
meses de gestação. Era feita de madeira de mogno talhado à mão, com grandes
almofadas, das quais o revestimento já havia se desgastado e sido substituído
por diversas vezes ao longo de sua existência.
Helen tinha então 19 anos, mas
conservava o jeito de menina despreocupada e moleca, estava sempre passeando
descalça pelas ruas da cidade, brincando com os cachorros que encontrava no
caminho, conversando com as donas de casa pelas janelas e cantando com os
trovadores nas praças. Chegava em casa e ia comer na cozinha, não fazia questão
de formalidades, regras ou responsabilidades. Dormia quando tinha sono, e isso
não significava exatamente à noite, pois costumava ficar com os horários
trocados e ir dormir às quatro da tarde, para acordar às onze da noite e passar
a noite acordada lendo os clássicos da estante do avô. De longe o seu preferido
era Madame Bovary de Gustave Flaubert, e todo ano quando chegava à casa dos avós,
antes de se aventurar nas páginas dos livros ainda não conhecidos ela fazia
questão de relê-lo.
Nunca teve uma religião de
verdade, apesar de ter nascido em uma família tradicionalmente católica. Certa
vez, quando tinha por volta de seus 13 anos escreveu em um pedaço de papel “Deus
existe” e colou dentro da porta do armário. Com o tempo passou a questionar
essa verdade e, aos 16 acrescentou uma interrogação no papel, “Deus existe?”. E
nunca mais se preocupou em pensar no assunto. Porque a vida seguiu adiante
independente disso, até o dia da visita surpresa de Thiago.
Como de costume, o avô de Helen a
levou para ajudar a escolher o peixe na feira. Era uma tradição familiar de
várias gerações, ir à feira no domingo comprar o peixe e assistir à banda que
tocava no coreto da praça. Helen adorava esses costumes dos avós e ajudava a avó
a limpar e preparar o peixe quando voltavam pra casa.
O avô de Helen se chamava Manoel
Ferreira e havia sido coronel da polícia antes de ser aposentado devido a um
grave acidente que inutilizou a sua perna esquerda. Andava sempre com ajuda de
uma bengala, recordando os tempos em que organizava as rondas noturnas,
perseguia ladrões de banco e diversas outras aventuras que contava para a neta
repetidamente todo verão. Ela não se importava em ouvir as recordações do avô,
gostava de fechar os olhos e imaginá-lo ainda moço, vestindo a farda engomada e
as botas reluzentes. Tudo aquilo fazia parte do seu ritual de todo verão e ela
apreciava cada momento que passava distante da realidade que deixava no Brasil.
Sentava ao lado da velha máquina de costura enquanto a avó Ana Lúcia fazia os
reparos nas camisas do avô. Ajudava vez ou outra pregando alguns botões, mas
não levava muito jeito para trabalhos manuais então acabava apenas fazendo
companhia para a avó.
Nesta tarde, quando Helen e o avô
chegaram em casa com o peixe trazido da feira, se surpreenderam com a presença
de Thiago, primo de Helen que estudava em Lisboa e passavam alguns finais de
semana na casa dos avós. Thiago era um jovem alto, magro, com cabelos negros
que acentuavam a sua falta de pigmentação e seus enormes e atentos olhos
verdes.
- Finalmente você apareceu!
Pensei que não te veria nessas férias. E ela abraçou o primo, despejando seu
peso sobre ele e quase caíram juntos.
Os dois riram de si mesmos.
Thiago também viveu no Brasil a vida inteira com seus pais, mas mudou-se para
Portugal com a mãe aos 15 anos, após o divórcio dos seus pais. Agora morava com
a mãe em Lisboa e fazia faculdade de Direito. A sua mãe, Maria de Lourdes era
irmã da mãe de Helen, que se chamava Maria Aparecida. Helen achava engraçado o
modo como todas as sete filhas de seus avós tinham o nome de Maria. Ela e
Thiago foram criados praticamente como irmãos e tinham uma ligação muito especial,
que mesmo depois de oito anos morando longe continuava forte. Os dois se viam
todo ano quando Helen ia passar as férias na casa dos avós ou quando Thiago ia
ao Brasil visitar o pai. E os dois mantinham contato por e-mail durante o ano.
Algumas vezes Helen mandava cartões postais de lugares que costumava frequentar
com o primo, e contava de como tudo perdia a graça sem ele por perto.
Até então nenhum dos dois
imaginava o que estava por vir naquela noite. Normalmente Thiago não se
dispunha a viajar até Monjijo em pleno domingo, tendo que estar de volta em
Lisboa para a aula de segunda de manhã. Mas uma preocupação repentina com o
bem-estar da prima deu a ele um sentimento de urgência, como se algo tivesse
acontecido ou estivesse prestes a acontecer e só ele pudesse evitar. Naquela
tarde os dois saíram para caminhar à margem do rio e aproveitaram para
conversar.
- Sonhei com você essa noite,
baixinha. Ele contou com um ar preocupado e sério.
- Que gay! Os dois riram.
- Fiquei preocupado que algo
pudesse ter acontecido e ninguém ter me contado.
- Fica tranquilo, que nada
acontece por aqui...
E os dois conversaram durante o
resto da tarde, sobre os acontecimentos do ultimo ano que passou, os amigos em
comum que tinham no Brasil, os planos para o futuro e tudo o mais que puderam
conversar. Chegaram em casa a tempo do jantar. Antes de ir dormir, Helen pediu
ao primo que ligasse no dia seguinte para os seus pais no Brasil para saber
notícias. Ela havia conversado com eles por telefone no dia anterior, mas de
repente uma incerteza tomou conta dela, sem que ela entendesse o porquê.
Pela primeira vez em dias ela dormiu
a noite inteira e quando acordou apenas abriu os olhos e disse “o papai está
morto”.
A cidade de Montijo |